quinta-feira, 8 de setembro de 2016

SEU LUIZ DOS PÃES DORMIDOS


A grande novidade do ano de 1965 foi a chegada de Seu Miguel, que veio ser o nosso novo vizinho. Seu Miguel tinha quatro filhos, sendo uma doente da cabeça por conta de mordida de cachorro. Chamava-se Tereza, passava os dias para lá e para cá, foi-não-foi chegava em nossa janela e perguntava á nossa mãe o dia e as horas. Seu Miguel era o provedor da casa, tinha uma gorda aposentadoria, o que garantia a alimentação dos filhos e netos. Uma vez que o Marido não trabalhava, Maria costurava pra fora. Messias era um homem bruto, esquisito, passava os dias do outro lado da rua, apostando o pouco dinheiro da família em partidas de sinuca. Maria era apaixonada pelo marido, era Deus no céu e Messias na terra. Como já disse, seu Miguel só se preocupava com a filha louca, a que o cachorro mordera. Tereza era solteira, mas seu Miguel tinha ainda outros dois filhos solteirões e sem emprego, e isto pesava no bolso dele.. Ninguém trabalhava ali, todos esperavam pelo dinheiro do velho, inclusive o genro Messias, marido de Maria, que costurava pra fora, era mãe de três crianças, dentre elas o meu amigo Chico, que adorava comer cebola. Havia um moço triste naquela casa, seu nome era João, era filho mais novo de seu Miguel. A nossa irmã gostava de colocar apelidos nas pessoas da vizinhança, principalmente gostava de apelidar os rapazes, o Itamar, filho de d. Maristela merecera de Fátima a alcunha de Cara de Limão Azedo, e o João ela o apelidara de o Macaco do Olho Rasgado. Eu confesso que gostava dessas brincadeiras da Fátima, eu chamava também o tio do meu amigo Chico de o Macaco do Olho Rasgado. Ele namorava a Nair, filha de seu Calunga, pai do Isnaldo, que era outro amigo meu, também nosso vizinho. Isnaldo era o garoto mais paquerado,tinha a preferência de todas as meninas, inclusive da nossa irmã, Conceição. As meninas da vizinhança ora gostavam do Isnaldo ora paqueravam o Alécio, que estudava na d. Maria Augusta. Alécio era filho do meu padrinho, um pobre carpinteiro, residia próximo do seu Antônio Nonato, que tinha uma bodega sem balcão. Eu me lembro de que ele estudava também no Patronato, mas que, por falta de pagamento das mensalidades escolares, teve de passar a estudar na d. Maria Augusta. As aulas aconteciam no período da tarde. Uma vez eu decidira não ir a escola, mas quando vi Alécio passando, mudei de ideia, vesti imediatamente o calção, a camisa, peguei o meu material escolar, fui ao forno do fogão, peguei de um pedaço de pão seco enfiei dentro do saco dos livros e sai correndo para alcançar o Alécio, ele notou eu vindo atrás e parou na esquina da rua da Mulher do Beco. Aí o meu saco estava furado e tudo caiu no chão, inclusive o meu lanche, um naco de pão dormido, sem manteiga. Ele também era pobre, menino de uma roupa só. Eu só virava atração para as moças no quesito higiene, todas as vezes que íamos pra missa, quando da hora de ajoelhar, eu ficava paralisado de vergonha, ouvindo as moças no banco de trás, cochichando umas com as outras, elas reparavam nos piolhos da minha cabeça. Na vila em que eu morava não havia nenhuma consideração para com a minha pessoa, menino bonito era o Chico, porque comia verdura, ele era gordo e corado enquanto eu era seco e amarelo, e ainda por cima ostentava um pronunciado bucho. Chamavam-me também de Calção Meia Bunda. Por esse tempo as lojas de departamento não se preocupavam com a vestimenta da criança, em sua grande maioria, as lojas vendiam somente tecidos. Nós, as crianças, ficávamos de fora do mercado. Tudo o que eu queria era uma calça comprida para me sentir um homenzinho... De ordinário os meninos e meninas andavam nus pelo meio da casa e na vizinhança. Eu passava horas nu, sentado em cima do nosso rádio de barbearia. Tinha situação pior ainda: Na casa do seu Josa não tinha banheiro, e quando o filho dele, que era meu amigo, queria fazer cocô ficava chorando, implorando pela chave do banheiro, que estava interditado. E chorava que se espremia todo, eu nunca vira tanta miséria em cima de um só cristão!
___Até que uma noite, seu Miguel deu uma facada no genro, quem viu primeiro foi a Lucinha, amiga da nossa irmã. Depois disso o velho fugiu levando a filha doida. O velho fugiu! Então veio a fome, a mais indigesta das gentes. A Fome veio e sentou-se à mesa da família do meu amigo Chico. Foi aí que a porca torceu o rabo, nem cebola o Chico tinha mais para comer... Certa manhã, nossa mãe preparou uma bacia pequena de bananas corudas do quintal, pediu que eu fosse deixar na casa de D. Maria. Foi o que eu fiz: Quando cheguei na porta da sala, o João Macaco do Olho Rasgado mandou ver um sorriso amarelo, disse: Ah! Diga a D. Socorro que muito obrigado! Pegou a bacia, levou para dentro, deixou as bananas sobre a mesa da cozinha e me devolveu a vasilha.
___O irmão de D. Maria era um pobre diabo que nunca conseguia um emprego.Eu não sei como foi que Nair se casou com ele...
A minha primeira relação com a música se deu por conta do seu Luiz da venda. A nossa família comprava fiado numa birosca defronte da nossa casa, o dono do botequim era o seu Luiz, um velho asqueroso e muito calado, comprava pão apenas uma vez por semana e os revendia no fiado. Todos os dias há que buscar os pães na caderneta, e não podia haver reclamação nem devolução, porque era tudo no fiado; o velho, de rosto congestionado, sentia-se violado em seu negócio, pois os pagamentos eram sempre atrasados, a prefeitura atrasava. Até que um dia o velho Luiz disse que não forneceria mais fiado. Basta! Eu não vendo mais fiado, vocês não podem pagar. O repertório de música que o nosso irmão nos deixou trazia um compacto do cantor Bobby Solon, tinha uma canção que dava para traduzir como sendo uma sátira ao seu Luiz, quem percebeu isso foi o nosso pai, que nos disse: Ouçam: Oh está dizendo VEI LUIZ VEI LUIZ VEI LUIZ... E era mesmo, o som da letra da música cantada soava como se fora Vei Luiz. Foi assim que seu Luiz ganhou trilha sonora em nossa casa.

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